Filhos de Sangue
A ficção científica se caracteriza pela extrapolação de conceitos, idéias ou tendências da ciência e tecnologia e seus desdobramentos na sociedade. Logo, é comum que os assuntos abordados nesse gênero se relacionem com viagens espaciais, vida extraterrestre, novas tecnologias, novos tipos de sistemas políticos e que se passem no futuro. O conto “Os Hospedeiros”, da autora estadunidense Octavia E. Butler, publicado pela primeira vez em 1984, utiliza desses elementos da ficção científica e vai além, utilizando inversão de papéis de gênero, os quais normalmente são atribuídos aos sujeitos, pela sociedade; as questões como maternidade e patriarcado sofrem essa inversão no conto.
A história se passa em um futuro no qual um grupo de humanos, fugindo de conflitos com membros da própria espécie, abandonaram a Terra e passaram a viver num planeta habitado por seres denominados Tlic, dotados de inteligência assim comos os humanos. Após conflitos entre as duas espécies elas selam um acordo que garantiria a sobrevivência das duas formas de vida: os humanos viveriam em um território independente chamado de “Reserva”, protegido pelos Tlic, e teriam acesso a alimentos que proporcionariam uma maior longevidade da vida humana. Em troca, alguns seres humanos deveriam servir como incubadoras para os ovos dos Tlic, permitindo a perpetuação da espécie.
Nesse conto é o destino de um garoto, Gan, servir a esse propósito, que lhe foi atribuído desde o nascimento pela Tlic Fêmea T’Gatoi. Gan sempre aceitou esse destino e parecia indiferente ao fato de ser o um hospedeiro até os eventos do que ele descreve ser sua última noite de infância: ao presenciar o “nascimento” de uma ninhada de Tlics o jovem toma conhecimento do que realmente significa ser um hospedeiro e do que o aguarda. A partir desse momento o jovem passa a questionar sua liberdade e a relação entre humanos e Tlics, em especial sua relação com T’Gatoi.
Com uma narrativa em que o sentido da história é construído aos poucos, são apresentadas as relações de poder e o papel social atribuído a alguns seres humanos enquanto hospedeiros, contrastando com o modo de vida na Terra. Os homens, por exemplo, normalmente são os escolhidos para incubar os ovos e enfrentar alguns dilemas que antes, na Terra, eram relacionados ao sexo biológico feminino, como a pressão em ceder o corpo para a perpetuação da espécie.
O questionamento se a relação entre a raça humana, enquanto incubadora, e os Tlic era, de fato, uma escolha ou uma relação de poder, se faz presente no conto com as interações entre Gan, sua família e T’Gatoi. Em alguns diálogos a mãe de Gan apresenta certo desconforto passivo com as posições tomadas por T’Gatoi e gera desconfiança sobre essa relação entre espécies ser diplomática.
Quando Gan se posiciona contrário a ser um hospedeiro, a alienígena prontamente utiliza da familiaridade para persuadi-lo. Ainda encontrando certa resistência por parte do jovem, T’Gatoi se torna mais agressiva ao manipular seus sentimentos, deixando claro que, se a recusa continuasse, ela usaria a irmã dele para cumprir seu objetivo. Por fim o homem, com medo de perdê-la e para proteger sua família, acaba cedendo.
Octavia E. Butler inova neste gênero de exploração espacial ao abordar que os seres humanos não são mais colonizadores de outros planetas, mas sim refugiados que dependem de outros seres para sobreviver, mostrando uma convivência de protocooperação entre duas espécies. Mas ao longo do conto é possível notar que a relação não se dá entre partes iguais: seres humanos têm o dever de constituir família para que existam hospedeiros suficientes para os Tlic e não devem possuir armas de fogo para que não ocorram conflitos.